Ilha do medo, de Martin Scorsese

Por Pedro Fernandes


É, sem dúvidas, o melhor filme até agora depois daquele boom visual (apenas visual) de James Cameron – falo de Avatar, evidente. E vem recobrar que, fazer bom cinema hoje, ainda é possível, mesmo sem o uso exagerado de efeitos visuais. 

Algumas pequenas falhas quando no trato de certas questões – como o nazismo e o holocausto, mas não me pareceram temas pelos quais Scorsese viesse se guiar para explorar neste filme. Tanto que, a meu ver, a única redução coerente que faria de Ilha do medo se chamaria por um adjetivo: impecável.

O que Scorsese parece por a prova ao fazer uma história que é puro devaneio psicológico – e até nisso não há novidade; o cinema mesmo já deu provas de uso dessa técnica, desde as situações mais simples, como a de induzir o telespectador a crer desconfiando da história narrada, à construção da chamada narrativa em níveis como neste Ilha do medo; o que o diretor, dizia, parece por a prova é a dúvida entre a existência do eu unidade e do eu múltiplo. Aliás, esta última tem no alvorecer da psicanálise (já que estamos tratando de devaneio psicológico) um dos seus lugares de origem.

Junto com essa categoria de eu, outra é também posta à prova a cada curva da narrativa – a noção de verdade. Aliás, é esta talvez a categoria mais forte na trama. Não sabemos bem ao certo onde que ela começa ou onde que finda a mentira. Parece vir recobrar que tudo o que nos cerca, inclusive nós próprios, não passa de uma fabricação mediada pela linguagem.

Recordemos brevemente aquilo que para muitos findará sendo apenas um thriller psicológico, mas que, como temos dado a observar, ultrapassa esses limites e dá ao cinema enquanto arte o ‘dom’ de intervir em determinadas realidades comuns. Em cena, Teddy Daniels, personagem vivida por Leonardo DiCaprio (em excelente forma, diga-se); o detetive tem uma perturbada viagem num mar revoltoso até chegar a Ilha do Medo, território que abriga um complexo psiquiátrico então comandado pelo suspeito Dr. Cawley.

Na ilha estão os pacientes considerados perigosos, numa espécie de manicômio de alta segurança. A fuga de interna levará Teddy e seu assistente a uma busca que é o fio dessa narrativa. Nesse itinerário o telespectador, antes confiante na posição segura que representa o detetive, a desconfiar dessa posição; Teddy é o que podemos chamar de uma personagem problemática – com sinais demonstrados desde as cenas de enjoo durante a viagem para ilha. Depois ficaremos a par de um histórico de perdas e daí, então, começamos a compreender que tudo pode ser, de fato, realidade, ou não, apenas produto da cabeça perturbada de Teddy.

Ilha do medo, então recupera a ideia de mal estar do sujeito contemporâneo – as obsessões, os medos, as manias – tudo acelerado por um contexto histórico igualmente complexo sobre o qual acima falamos. Nesse itinerário está ainda a reinstauração da própria ausência de limite entre civilização e barbárie. Portanto, é um filme que se utiliza da renovação linguística do cinema para intervir num determinado aspecto da história e da ciência, seja a dizer que o mal do nazismo não está de um todo cortado pela raiz, mas ainda é um fantasma vivo a rondar a cadeia humana, seja a fazer crítica veemente aos limites estabelecidos pela psiquiatria entre o que é loucura e o que é lucidez. Isso para ficarmos em dois detalhes dos mais superficiais da narrativa; que se fôssemos à procura de minúcias outras questões viriam à tona. Um filme dessa natureza – impecável – merece uma (e várias visões) até se ter essas outras minúcias. É um exercício válido.


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