A qual artista associas teu escritor favorito?

Por Pedro Fernandes

 Jean-Honoré Fragonard. Carta de amor.


A pergunta veio através do colunista do jornal espanhol El País Winston Manrique Sabogal depois da leitura do escritor irlandês Colm Tóibín em um artigo para o caderno cultural Babelia. O artigo em questão tratava do poder subterrâneo da literatura de Ernest Hemingway por ocasião do cinquentenário de sua morte feito no passado 2 de julho. 

Numa determinada passagem do seu texto, Tóibín retoma um fragmento de uma entrevista do escritor estadunidense em que ele afirma que queria escrever tal como Cézanne pintava. 

"Se Ernest Hemingway queria ser uma espécie de Cézanne da literatura, isto é, escrever com a força e a técnica pictórica do grande artista francês do pós-impressionismo, creio que conseguiu em muitas de suas obras, mas Homero, Shakespeare, Cervantes, Austen, Proust ou Woolf gostaria de se parecer com qual artista?" Pergunta.

"Como é muito difícil saber a resposta, me tem ocorrido propor um exercício de sinestesia literária-artística com a seguinte pergunta: com qual artista poderíamos associar escritores como Tolstói, Fitzgerald, Joyce, García Márquez, Mishima, Henry James, Kawabata, Pound, Balzac, Dostoiévski, Yourcenar, Morrison, Marías, Byron, Stendhal, Brontë, McCarthy, Lorca, Pavese, Mann, Faulkner ou o autor que gostamos?"

Trata-se de uma leitura de pura intuição sensitiva; recolher de uma imagem a imagem captada pela forma da escrita. Nisso, o observador não necessita apenas de um bom faro nos dois mundos artísticos, o da literatura e o das artes plásticas, mas uma boa compreensão crítica acerca deles.

Rubens. Dança dos aldeões.

O fato é que, ao final desse exercício, Sabogal associa os trabalhos literários e artísticos de dois escritores e pintores: Jane Austen a Jean-Honoré Fragonard e Gabriel García Márquez a Rubens. A primeira relação vem pelos traços delicados do pincel do pintor francês, a riqueza nos detalhes e maneira como espalha as cores e as sombras sobre a superfície da tela.  

Já quanto a relação do Prêmio Nobel de Literatura colombiano com o pintor flamengo, diz Sabogal, "encontro na vitalidade da pintura, na força do movimento de suas personagens e do quadro em geral; pela vida que move e palpita em ambos, onde nunca existe nada parado, imóvel, e em muitos deles sucedem várias coisas ao mesmo tempo, e cada fragmento está num só instante em algo que acaba de acontecer e algo que vai acontecer no futuro. Sugere passado e futuro."

*

A relação estabelecida por Sabogal e a pergunta que lança ao seu leitor formulam o tema desta publicação, porque fui levado a me perguntar a qual artista poderíamos associar a José Saramago, meu escritor favorito, como é sabido do leitor que acompanha este blog desde há muito. E a resposta não é muito demorada. Logo me volto para as telas do brasileiro Arthur Luiz Piza. Alguns de seus trabalhos ilustram as capas das recentes edições do escritor português publicadas no Brasil pela Companhia das Letras.

Ora, talvez eu esteja diretamente influenciado por uma relação já pré-estabelecida. Mas, o encontro da literatura saramaguiana com a arte de Piza ocorre porque consigo ver nos dois a necessidade de captar tudo aquilo que lhe cerca num só close; além, é claro, do caráter sempre inacabado e transitório que oferece a obra dos dois artistas mais a aplicação de materiais de relevo estranho à tessitura natural da narrativa desenvolvida. Isto é, um e outro buscam traduzir uma simultaneidade, como se tudo ocorresse a um só instante e beneficiam-se para isso de diversas matizes externas ao material principal de sua lida.

Arthur Luiz Piza. Aquarela.

E mais: da mesma maneira que a escrita saramaguiana se mostra como uma escrita de sugestões, as telas de Piza, pela incerteza do elemento pictural, também nos são sugestões. Ambas as artes são um bricoleur - isto é, seus cultores se utilizam de meios e matérias-primas ao alcance da mão do artista, não realizando seu objetivo com a obra a partir de um projeto elaborado previamente, mas daquilo que encontra e organiza para sua composição no ato de composição. 

As duas obras, a de Saramago e a de Luiz Piza, possuem como características uma composição heteróclita e mesmo complexas, extensas, possuem uma simplicidade, uma objetividade, acolhida com alguma inteireza pelo leitor/ espectador. E o resultado alcançado é sempre o imprevisto ou o sugerido para este outro do outro lado da obra e não especificamente o determinado pela obra.

Nos dois está a certeza de que o espectador e o leitor não são figuras passivas ante o que o visualiza/ lê, mas são igualmente produtores, interventores, construtores de sentido e da própria arte. Agora, dito isto, volto à pergunta lançada por Sabogal e deixo aberta para o leitor. E, você? A qual artista associas teu escritor favorito?


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