Ainda Rachel de Queiroz, O Não Me Deixes




O Não Me Deixes – suas histórias e sua cozinha é o primeiro livro da escritora Rachel de Queiroz que ganha reedição pela José Olympio Editora (o livro havia sido editado pela Editora Siciliano em 2000). Esta obra da romancista  não foge o seu tema preferido: o nordeste brasileiro. Aqui, ela mescla lembranças e gastronomia e apresenta algumas raridades da culinária sertaneja. A escritora revela o preparo de diversas receitas já consagradas em todo o Brasil e fala sobre os muitos ingredientes típicos da região. A descrição das mais diversas delícias aprendidas em Não me Deixe, fazenda da família no Ceará, revelam os costumes e os gostos do povo sertanejo. Já em outubro a José Olympio através havia lançado Tantos Anos, livro que reúne uma mistura de lembranças e receitas.

Mais do que revelar traços de uma cultura da qual a escritora fez parte, O Não Me Deixes é composto de uma memória afetiva que vem não através dos hábitos culinários, mas dos cheiros e sensações corporais provocados do seu imaginário. Dessa maneira, em torno da culinária é possível organizar e perceber uma gama de gestuais também compartilhados em sociedade. O livro traz à tona também pela habilidade rememorativa uma cartografia sobre o lugar e a vivência íntima com a escritora.  Os pratos típicos e a doçaria compõem o foco da autora; em especial, as compotas são o centro de sua atenção como se a capacidade de fazê-las concedesse outro estatuo social, distanciado da atividade da escrita e identificado com o sua posição no grupo social do Não Me Deixes. Nesse sentido, as habilidades culinárias vivenciadas na obra revelam duas dimensões: uma coletiva e outra individual.

"Para Rachel de Queiroz, a cozinha do Não Me Deixes constitui um espaço significativo que alia o passado e o presente de sua família. A cozinha atua, nessa ordem, como lugar de fala de onde emerge a memória do lugar; é um espaço privado que sinaliza a constituição do lugar público. Assim é que metonimicamente, ao receber a fazenda como herança de sua avó Dona Rachel, a primeira iniciativa a ser tomada foi refazer, nos mesmos padrões, a antiga forma que compunha a cozinha de sua avó", reflete Adriana Sacramento.

"Aliás, a casa do Não Me Deixes lembra tanto quanto possível a casa velha do Junco, que ainda continua impávida, nos seus duzentos anos, erguida que foi pelo velho Miguel Francisco de Queiroz, tio do meu avô, homem de largas posses" (O Não Me Deixes)

Outra questão trazida pelo livro de Rachel de Queiroz é sobre o papel da mulher nas funções domésticas. Na cozinha, ela [a mulher] transita por diversas posições, desde aquelas que ficam restritas ao preparo da comida e as que cuidam de toda organização familiar. As "meninas da cozinha", como chama a escritora passam o dia colocando em prática os afazeres culinários, saindo de lá somente após a janta, última grande refeição. "Na faixa intermediária dessa organização, nas famílias mais abastadas, está uma espécie de chefe de cozinha e governanta, mulher mais antiga que já domina toda forma estruturada da memória culinária e que, portanto, reproduz os elementos dessa tradição", conforme lê Sacramento. Em O Não Me Deixes, podemos perceber a presença de duas mulheres que estariam no topo da habilidade culinária: "Antônia", a que fez Nise cozinheira. Além do que, o livro de Raquel revela certo destino a que estão ligadas as mulheres, afinal, desde cedo, as meninas são introduzidas nos afazeres domésticos e mais tarde no âmbito culinário.

Este é um livro, portanto, indispensável aos leitores que não apenas têm uma predileção pelas receitas e pelo aparato da cozinha, mas aquele que, instigado pelo tema como metáfora de um contexto histórico-social queira conhecer os hábitos, costumes e modos culturais de um Brasil cuja tradição pouco restou para os da contemporaneidade.


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