As colunas femininas de Clarice Lispector


Por Juliana Perez



Desde que perceberam a existência das colunas femininas de Clarice Lispector, uma assombrosa inquietação arruinou as certezas dos leitores de literatura.

O alvoroço até rendeu um quadro sobre esta faceta de Clarice no programa de maior audiência da Rede Globo, o Fantástico. E a cada nova edição das colunas femininas, organizadas em coletâneas pela professora Aparecida Maria Nunes – recentemente a pesquisadora lançou o Correio para Mulheres – a interrogação reaparece: como uma escritora consagrada, com uma produção literária marcada por uma intensa introspecção, poderia escrever sobre temas tão banais e vazios?

Os primeiros escritos de Clarice sobre a mulher surgiram ainda quando era acadêmica da Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1939.

Quando, em 1952, recebeu o convite do amigo Rubem Braga para escrever uma coluna feminina, confessou que não era cronista e que, portanto, não sabia escrever crônicas. O gênero, criado pelo amigo, não a agradava, mas acabou aceitando o convite. De maio a setembro de 1952, se dedicou à coluna Entre Mulheres, assinando com o pseudônimo Tereza Quadros. Em carta ao amigo Fernando Sabino, Clarice comenta sobre o pseudônimo: “ela é disposta, feminina, ativa, não tem pressão baixa, até mesmo às vezes feminista, uma boa jornalista, enfim”.

As crônicas de Tereza se destinam às mulheres maduras, experientes, casadas e que têm o hábito de leituras reflexivas, mas que se permitem, também, ir em busca de temas leves. No entanto, quando se deparam com as crônicas de Tereza Quadros, não encontram a superficialidade inerente às demais páginas de amenidades, pois suas palavras estendem as mãos às leitoras num convite ao inesperado. São textos profundos, narrados por alguém que viveu e que conta, naquele espaço, sua experiência.

Tereza é a jornalista que se detém aos pequenos detalhes, aos instantes que se esvaem no vento, assim como uma folha de jornal. Instantes que desvirginam a alma com suas promessas insanas de amor, com seu olhar de ilusão, fantasia, realidade. Instantes que não cabem nas mãos de tão inquietos. Instantes que formam a vida – e que são febris como ela. “Notícia de jornal é como a vida: continua, continua sempre e a gente tem de ir virando as folhas, como se vira a folhinha do calendário cada dia, cada mês e cada ano” (NUNES, 2006, p. 246).

A leitora se permite a essa reflexão, se abre ao desconhecido. Este caminho é iniciado pela jornalista, que conduz a mulher por este labirinto cheio de mistérios. Ela coloca a leitora diante da incógnita de sua vida para que esta seja arrebentada. “Se Tereza Quadros não fosse Clarice Lispector, talvez a página feminina de Comício nada tivesse a acrescentar a outras páginas femininas, tão iguais (NUNES, 2006, p.13).



No Correio da Manhã, sob o pseudônimo Helen Palmer, Clarice assume a coluna Correio Feminino todas às quartas e sextas-feiras, de agosto de 1959 a fevereiro de 1961.

A colunista do Correio Feminino busca despertar nas mulheres o desejo de adquirir um tipo de beleza que floresce no âmago do ser.

Em suas dicas, conselhos e receitas, ela não hesita, o que dá confiança às leitoras ávidas por seus ensinamentos. Helen Palmer diz que a mulher moderna não deve esperar pelos bons sentimentos – como a felicidade. É preciso fabricá-los, apesar das circunstâncias negativas. “Claro que se o dinheiro falta, se a saúde vacila, se o amor arma alguma cilada, seu desejo de rir será pouco” (NUNES, 2006, p.71), compreende a colunista, que em um tom aconselhador, dita os primeiros ingredientes para se conseguir uma poção milagrosa de beleza e felicidade. “Cultive o bom humor, como quem cultiva um bom hábito. Esforce-se para ser alegre. Afaste os sentimentos mesquinhos que provocam o despeito, a inveja, o sentimento de fracasso, que são origem de infelicidade. Adote uma filosofia otimista, eduque-se para ser feliz. Você o conseguirá. (…) Seja feliz, se quer ser bonita! (NUNES, 2006, p. 71).  
            
A Correio Feminino é patrocinada por uma marca de cosméticos, a Pond’s. No entanto, os conselhos da colunista sobre beleza não se restringem ao uso de maquiagem e cremes que prometem resgatar a juventude. Para Helen Palmer, a beleza é a felicidade e os sentimentos que nos fazem humanos. Nada é mais belo do que ser feliz.



No mesmo período em que escreve o Correio Feminino, a escritora jornalista aceita o convite para contribuir com o Diário da Noite, no período de abril de 1960 a março de 1961. Ali, na coluna Só para Mulheres – publicada de segunda a sábado – torna-se a ghost-writer da atriz Ilka Soares, com quem viria nutrir de intensa amizade.

Diferente das demais colunistas femininas, Ilka Soares já era conhecida pelo público quando ganhou uma página feminina assinada por Clarice.

O jornalista Alberto Dines confessa que hesitou em convidar Clarice para escrever a página feminina de Ilka Soares. “Imaginei que não aceitaria. Escritora conhecida e sofisticada, certamente recusaria ser a ghost writer numa página feminina diária. Para minha surpresa, aceitou com entusiasmo” (NUNES, 2006, p.7).

Como uma espécie de clube somente para mulheres, a coluna Só para Mulheres abordava temas relacionados à sensualidade, feminilidade, etiqueta, além de receitinhas infalíveis de beleza, bem-estar e organização do lar.



Ilka Soares é bela e representa o modelo idealizado pelas mulheres. Esse atributo a aproxima das leitoras, que querem ouvir o que a atriz famosa tem a dizer. A coluna surgiu com o objetivo de ser a extensão das passarelas, de descrever a vida glamorosa dos famosos, mas não se deteve somente a isto. Clarice Lispector a transformou numa via entre Ilka e as leitoras, entre as leitoras e elas mesmas.

As páginas femininas de Clarice – ou páginas de amenidades, como era também conhecidas – nascem em um ambiente predominantemente masculino. Pouquíssimas mulheres ocupavam as redações de jornal. Dinah Silveira de Queiroz, Elsie Lessa e Rachel de Queiroz estavam entre as jornalistas que escreviam colunas literárias. As colunas de Clarice tinham um tom pessoal, de conversa íntima. Certa vez, confessou: “acho que se eu escrever sobre o problema da superprodução de café no Brasil terminarei sendo pessoal” (NUNES, 2006, p. 15).

É interessante perceber como Clarice pensava a página do jornal. Os recursos de diagramação eram muito escassos, principalmente quando se tratava das páginas dedicadas às mulheres. Para o jornal, o importante era que a página feminina não saísse em branco. Para Clarice, aquele espaço era o mais importante, por isso o capricho: fazia recortes de gravuras e moldava o texto com esmero. “Não era apenas uma colunista diligente, atenta à sua leitora, mas uma editora caprichosa. Queria opiniões, cobrava sugestões, levava tudo a sério”, disse Alberto Dines.

A verdade é que – apesar do teor ser semelhante a tantas outras colunas dedicadas às mulheres, com seus conselhos e receitas de felicidade e de como agradar o homem amado – as páginas femininas de Clarice Lispector fogem do convencional ao retratar simplesmente a vida. “Entre os fatos há o sussurro. É o sussurro que me impressiona”, diz Clarice.

Para ela, a vida foi uma incessante busca por aquilo que de tão misterioso não tinha nome, uma busca pela liberdade, pelo que não é palpável, pelos sentimentos que nos fazem humanos. E embora soubesse que o que se sente não pode ser traduzido, a palavra foi a maneira que encontrou para se pôr no mundo. O que queria dizer só poderia ser dito pela palavra. A pedra dura teria que revelar a delicadeza dos sentimentos e suas sensações fugazes e extremas. “O que eu quero contar é tão delicado. É tão delicado quanto a própria vida. E eu queria poder usar a delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva” (LISPECTOR, 1999, p.68).

Sua escrita exige do leitor entrega, doação. A mesma doação ao amor poetizada por Tom Jobim numa entrevista que concedeu à escritora. “Amor é se dar, se dar, se dar. Quem não se dá, a si próprio detesta, a si próprio se castra” (CLAIRE, 2007, p.116). Para entender Clarice é preciso desarmar-se e escutá-la. Escutar os sons do texto, ouvir muito além do que está escrito. Escutar é entender que é preciso parar de enxergar aquilo que se quer ver. Enquanto o leitor estiver somente atento às palavras escritas, não conseguirá sentir nada do que está sendo dito. É preciso estar disposto, não apresentar nenhuma resistência.



Porém, para entregar-se é preciso maturidade. Não a maturidade dos anos ou a ligada ao lado intelectual, mas aquela que envolve as sensações, os sentimentos. A própria escritora revela isso em A Paixão Segundo G.H, romance publicado em 1964: “Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada” (LISPECTOR, 1998, p.3). Em entrevista, em 1977, ao programa Panorama Cultural da TV Cultura, confessa: “Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e, sim, de sentir, de entrar em contato. Ou toca ou não toca”, porque o mais importante fica atrás do pensamento e precisa ser sentido e aqueles que mergulham em sua escrita sentem a imensidão e a força de significados que acalmam e sufocam a alma quase que instantaneamente. É um susto que resgata e inquieta, capaz de provocar dor e prazer num paradoxo singular e infinito.

O Jornalismo na vida de Clarice

O primeiro encontro com o jornalismo aconteceu aos 7 anos de idade. Na época, morando em Recife, o Diário de Pernambuco dedicava uma página às produções literárias infantis, O Diário das Crianças. No entanto, as de Clarice nunca foram publicadas. O motivo: não havia fatos em suas histórias, apenas a descrição do que ela sentia em relação às crises financeiras enfrentadas pela família, assim como a paralisia da mãe. Sobre isso, confessa: “eu era muito alegre e escondia de mim a dor de ver minha mãe assim. Você sabe que só relembrando de uma vez, com toda violência, é que a gente termina o que a infância sofrida nos deu?”. Os textos de Clarice refletiam apenas essas sensações. Característica que a acompanhou por toda uma vida e que pode ser percebida em tudo que escreveu.

Sua produção literária – uma aventura sem pudor ao mais íntimo de si – se deu de forma mais intensa após a morte de seu pai, Pedro Lispector, em 26 de agosto de 1938, devido a uma cirurgia de vesícula mal sucedida. Já o jornalismo surgiu como meio de sustento. Aos 20 anos, tenta empregar-se como tradutora no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Como o cargo já estava ocupado, é empregada como redatora e repórter da Agência Nacional. Com o primeiro salário como jornalista, adquire o livro de contos da ficcionista neozelandeza Katherine Masfield, Bliss – Felicidade, traduzido por Érico Veríssimo. O encantamento pelo livro foi tanto que confessou inúmeras vezes: “Mas esse livro sou eu!”.



Sua primeira entrevista, publicada no dia 19 de dezembro de 1940, é com o escritor Tasso de Oliveira. A primeira reportagem, Onde se ensinará a ser feliz (sobre um lar para meninas carentes) foi publicada no Diário do Povo, de Campinas (SP), em 1941. Contribuiu ainda com os jornais – Jornal Comício (fundado por Rubem Braga), Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Jornal Última Hora, Diário da Noite, A Noite (onde era a única mulher) – além das revistas Fatos & Fotos e Manchete.

Foram mais de 30 anos dedicados ao jornalismo. Entrevistas e reportagens que fugiam da objetividade e da imparcialidade características da estrutura jornalística. Seus textos transgridem as normas dos manuais de jornalismo, não por falta de conhecimento das regras, mas por acreditar que a palavra deveria ser a bússola em busca do humano, do resgate do humano no ser e da redescoberta desse ser no mundo.

O pensamento de Clarice não se inicia nem se finaliza em único livro. “O que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Das palavras deste canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases. Você sente?” (LISPECTOR, 1978, p.33).

Nenhum livro de Clarice fala por si só. As colunas femininas não falam por si só.

Em Clarice, é como se um livro estendesse a mão para o outro e para o outro e para o outro até tocar o rastro do seu pensamento. Por isso, sentenciar a produção jornalística de Clarice Lispector, principalmente as colunas femininas, como inferior à sua produção literária é tombar no erro de uma raciocínio que não permite alçar voo, pois está tão fechado, triste e enrijecido dentro de si que é incapaz de perceber que a porta da gaiola sempre esteve aberta.

Referências
CLAIRE, Williams. Entrevistas: Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NUNES, M. Aparecida. (Org). Correio Feminino: Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
________. Correio para Mulheres: Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

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Juliana Perez concluiu graduação em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN, 2012) com o tema Jornalismo e Literatura em Clarice Lispector: a desconstrução da entrevista jornalística. É Mestra em Ciências Sociais e Humanas pela UERN. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo.  

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