Nelson Rodrigues e A vida como ela é



Nelson Rodrigues pode ser designado como um famoso dramaturgo, cronista, jornalista, romancista – encoberto sob o pseudônimo feminino de Suzana Flag –, polígrafo, moderado pornógrafo e amante do futebol. Tantos depois, o mundo segue redescobrindo sua obra enquanto no seu país ainda segue como um desconhecido de leitura necessária; A vida como ela é, por exemplo, foi traduzida pela primeira vez para o espanhol agora em 2015. Obra significativa (para não dizer a mais significativa) de Nelson. 

Retrata os hábitos amorosos da sociedade carioca dividida em duas classes sociais distintas: há peças que tomam como foco os mais abastados; outras, os marginais, aqueles sequer podem alimentar seus filhos. Mas, em grande parte, Nelson foi um observador contumaz da classe média; em A vida como ela é mesmo, a maioria das vezes o centro de atenção se situa aí. E outro detalhes: há, sobretudo, um trânsito fluente entre classes – como foi representado pela literatura desde Machado de Assis. 

Como destaca Cristian De Nápoli no prólogo para a edição espanhola, Rodrigues “conta a seu modo a crise do matrimônio durante a primeira etapa do neoliberalismo na América Latina, depois da Segunda Guerra Mundial, em sintonia com o boom da grande cidade”. Para Marta Sanz, a tradução que também é feita por De Nápoli resolve algumas dificuldades que no espanhol poderiam soar como anômalas se não estivéssemos diante de um bom tradutor, alguém que tivesse o ouvido perfeito para captar a língua viva, que parece ter sido um dos grandes exercícios do próprio brasileiro. 

“O estado de espírito revolucionário e muito folhetinesco da série talvez tenha sua origem num episódio acontecido na adolescência do escritor: sua cunhada Silvia disparou um revólver na presença dele”, lembra Sanz. Por sua vez, é esse caráter duplo que dá o movimento da linguagem na obra de Nelson e contribui para a presença de temas como a fidelidade, o adultério, a destruição da instituição familiar, o que por sua vez justifica o grande interesse da televisão em adaptar esse conteúdo.

A ambição panorâmica e realista expressa no título parece se contradizer desde a primeira até a última peça da série. Parece. Nelson tem olhos de lince em compreender que grande parte daquilo que o olho comum vê é máscara e aparência. Por isso quer enxergar aquilo que se oculta; os leitores recebem não apenas um registro de como as coisas de fato são, como a potente visão de um homem que sabe da corrupção e da depravação entre os sujeitos como elemento potencializador das vivências comuns. E essa potente visão recai sobre a família tradicional, essa que o romance realista já atacava ao demonstrá-la em vias de extinção pelo cinismo e pela traição. É claro que a família aqui é apenas uma metonímia para a sociedade como um todo.

Nelson Rodrigues pode então ser definido como depravado ou anarquista? Para Marta Sanz não. "Nelson é um moralista, um ideólogo da sensualidade e do casamento, um cronista negro daqueles que vê o que se passa atrás da porta e, por isso flagra, de vez em quando, que o tiro sai pela culatra. Daí seu encanto sedutor. Porque, embora censure o perigo dos beijos de língua, a maldade das relações adúlteras entre cunhados ou entre as mulheres e os melhores amigos dos homens; embora exponha um código de honra calderoniano de denúncia das víboras, dos consentidores, das mulheres que manipulam seus maridos, dos velhos que fornicam com meninas e as engravidam; embora escreva truculentos relatos sobre o aborto ou fala de homens que se prostituem como castigo para suas mulheres ou de filhas que aprovam que seus pais matem suas companheiras adúlteras; embora destaque velhos estereótipos como o do canalha e a cínica com adjetivos que julgam sem indigestão para as ações das personagens – ‘abominável’, ‘infame’, ‘esplêndido’; embora aconteça tudo isso e às vezes este escritor começa a ser para o leitor como muito maldoso, de repente, Nelson abre a mão para os beijos, e seu gosto pelo mórbido com a aparição para o detalhe escatológico e grotesco, às vezes quase surrealista, e estamos já diante de um escritor que é, sobretudo, um provocador", diz.

E sobre o caráter às vezes até surrealistas é notável em peças como “O pastelzinho” em que uma recém-casada morre por uma cólica,  “A inocente", protagonizada por um desdentado, ou o desenlace de “A dama da lotação”,  que em seu exagero e patetismo nos leva a evocar cenas de Buñuel interpretadas por atores histriónicos. São exemplos como esses que destacam a necessidade de colocar Nelson Rodrigues em seu merecido lugar dentro da literatura brasileira. "Os contos provocam, querem aliciar e aliciando, provocam porque a provocação é um legítimo instrumento didático para dizer como as coisas são. Ou talvez é que em nosso mundo as lições tenham se convertido numa provocação", destaca Sanz.

A outra característica relevante, que explica além do comentado êxito massivo desta série de textos, consiste no mérito da escrita diária: as peças de A vida como ela é foram publicadas diariamente entre 1951 e 1960 no jornal Última Hora. E Nelson Rodrigues escreveu mais de 2 mil delas, publicadas em livro apenas uma pequena seleção. Também o contexto de escrita proporciona as chaves para entender o encanto popular de um estilo acessível: o atrativo da fragmentação e da concisão, a explicitação, a velocidade vertiginosa das ações, os finais abruptos, a pornografia light – a subida de tom – o laconismo de alguns diálogos repletos de expressões coloquiais de seu tempo, o esquematismo de personagens e tramas que se reptem e combinam de distintas formas, criando uma confortável familiaridade para o leitor. Além de tudo, sobressai a ambiguidade de uma língua literária que se converte com tal força.

* Este texto se apropria das ideias de "Ración diaria subida de tono", da citada Marta Sanz.

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