Montedor, de J. Rentes de Carvalho


Por Pedro Belo Clara



Montedor é o romance de estreia de um dos autores portugueses, vivos, com obra mais difundida e condignamente reconhecida no que ao seu valor diz respeito. Aplaude-se, assim, a recente iniciativa da editora Quetzal, que propõe a redescoberta de um extenso trabalho digno de divulgação e leitura.

Sobre o autor propriamente dito, nascido em Vila Nova de Gaia (distrito do Porto), conhece-se a sua vasta colaboração com diversos jornais, tanto nacionais como estrangeiros. A internacionalização do seu trabalho, quer jornalístico quer novelístico, deve-se em parte à saída (forçada) do autor de Portugal por motivos políticos, em pleno regime salazarista. Nessa incursão, fixou-se sucessivamente em cidades como São Paulo, Nova Iorque e Paris. Seria, contudo, em Amesterdão que gozaria de uma estadia mais prolongada, tendo mesmo leccionado nesse país. A sua relação com os locais foi deveras frutífera, levando-o não só à criação de nossos projectos literários (A Amante Holandesa ou Com os Holandeses) como a merecer, por parte dos leitores e da crítica competente, um crescente ganho de admiração e reconhecimento.

Embora, até à data, prémios maiores não tenham sido (ainda) outorgados ao autor que já amealhou oitenta e quatro primaveras, poder-se-á destacar o louvor que a Associação Portuguesa de Escritores lhe concedeu em 2012 e 2013 nas categorias, respectivamente, de escrita biográfica (Tempo Contado) e de crónica (Mazagran), outro género que Rentes de Carvalho mais desenvolveu e aprimorou.

Efectivamente, essa veia de cronista, sempre atenta ao passar do tempo, dos homens e dos regimes sociais, está bem patente na essência mais genesíaca ostentada pelo romance em questão. É verdade que se trata do seu trabalho de estreia, mas o mesmo encontra-se muitíssimo bem conseguido em termos de enquadramento, personagens e suas dinâmicas, composição e sentido, consequência da natural experiência jornalista que Rentes de Carvalho, então com trinta e oito anos de idade, já havia amealhado.

Apesar de manter uma sobriedade de linhas e de ritmo, é até um romance composto por elementos bastante simples, nomeadamente em termos de léxico, organização de ideias e encadeamento de eventos. Mas, curiosamente, como acontece com os nomes que de grande mestria se dotam, essa simplicidade de processos literários torna-se numa das principais valências do romance, imprimindo-lhe uma fluida corrente de leitura que se enegrece devido à tensão subjacente à narrativa e consequentes infortúnios. É interessante, de igual modo, constatar a ausência de capítulos, optando o autor por divisórias mais simples – o que concede ao texto uma aparência sequencialmente corrida.



O romance foca-se na história do jovem Freitas, na qual certamente se plasmariam muitas outras de muitos outros jovens portugueses que viveram a década de sessenta em Portugal. Após chumbar no exame final do liceu, e sem coragem de transmitir a notícia aos pais que tanto se esforçaram por pagar seus estudos, entra numa espiral descendente em busca de propósito para a existência que, de súbito, sabe ter em mãos. A tensão é assim constante a cada página narrada, como antes dizíamos, fomentada pela presença constante do seu desejo de evasão (Paris será somente a derradeira miragem) e demais sonhos que o jovem não consegue concretizar (por falta de meios ou, a bem da verdade, por escassez de férrea vontade). Existe um dramatismo quase fatalista que nunca se concretiza e um exaspero que se prolonga por páginas e páginas. Sem avanços ou recuos, a narrativa desenrola-se assim pelo marasmo reinante de uma vida que a cada momento se desprende da sua vitalidade. Cria-se na personagem uma fúria íntima, é certo, mas amiúde sucumbe perante os condicionalismos sociais e o absurdo que descobre em tudo o que vê. Fatalmente, a desilusão adensa-se ao ponto de constringir o coração mais inocente e utópico.

«Um passado assim, sem colorido, sem dor a que possa dar dimensão, os meses contados como horas, as horas arrastadas como anos, uma névoa, nada do que prometiam os livros, nada do que pediam os sonhos, “os melhores anos da tua vida” nem esbanjados nem gastos, perdidos, como se perde uma bugiganga. Que quero eu?»

Realmente, parece não o saber. E assim se alastra o vazio de um tempo queimado no regimento militar, nos cafés em completa ausência e com mulheres de fácil sedução. Até regressar à terra natal, aquela que dá nome ao romance em questão, e dar-se a braços com novas promessas dúbias e de complexa concretização. (Diga-se, a título de curiosidade, que Montedor é uma pequena localidade marítima do distrito de Viana do Castelo, no extremo noroeste de Portugal. Poder-se-ia pensar que o regionalismo da linguagem se faz sentir devido a este breve apontamento geográfico, mas tal apenas se verifica muito pontualmente). Convenhamos que o ambiente familiar no qual o jovem subsiste em nada auxilia à dissipação de tão inóspitas nuvens, lidando a dita personagem ora com a indiferença violenta e viril do pai («(...) o velho que vem a casa uma vez por outra, comer, dormir, uma grunhidela, é bons-dias, boas-noites, olhos no jornal, arroto, porta fora, até à próxima») ora com a ânsia sufocante da mãe, sublinhando a ladainha de sempre: «Somos pobres, temos de parecer bem. Os ricos não gostam de quem anda desbragado. (…) Os ricos são ricos. Eles é que mandam!».

Em pano de fundo, mas sempre de presença vincada, encontramos o escalonamento das classes sociais reduzidas ao seu máximo contraste: ricos e pobres. Naturalmente, os conflitos entre ambos são explorados através dos pensamentos da jovem figura, nomeadamente a facilidade com que os “ricos” obtêm o que mais desejam e a obrigatória subserviência que os ditos “pobres” devem aos seus parceiros de escala. Este é um ponto deveras curioso de constatar pela sua fiabilidade, sendo cuidadosamente abordado pelo autor, embora faça-o, como sempre, de modo exemplar. A introdução de figuras como o visconde e o abade, símbolos do poder de então, são um exemplo de tal cariz.

Temos, portanto, o retrato de um jovem sem futuro aparente que até contrai matrimónio («(…) uma obrigação a que me prendo com a regularidade de quem achou emprego») apenas para responder perante a insensatez das suas incursões amorosas. E nem o nascimento do primeiro filho lhe abrilhantará a existência, pois a mesma, por essa altura da narrativa, está já em completa obediência a decisões alheias. Os custos, naturalmente, de uma vida nunca assumida pelas próprias perspectivas. Mas, de interpretação mais vaga, desprende-se do romance um humor negro, depreciativo, em relação ao infortúnio constante de tão pobre alma. Sob essa visão mais restrita, a novela adquire uma dimensão não necessariamente diminuta, mas de natureza diversificada e, quando à sua efectivação, de sapientes meios no que à transmissão do efeito e da mensagem diz respeito.

Em todo o caso, o retrato é leal e inteligentemente urdido, pois no dito se reconhecerão as mesmas ânsias, receios e dificuldades da maior fatia da sociedade portuguesa de então. O Nobel José Saramago, à época, e na sua condição de crítico, teceu a respeito as seguintes considerações: «O autor dá-nos o quase esquecido prazer de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza (…), uma linguagem que decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor». O presente trabalho funciona como uma competente denúncia social, e sob esse aspecto, principalmente, poder-se-á dizer que o mesmo se cumpriu fielmente.

«Rua, menino perdido, as horas em que a vida por um nada dá voltas e fico de fora, invejoso das luzes, ciumento da paz que só os outros têm (…).

Sentado na berma. De longe a longe passa um carro, os camiões roncam a atacar a subida, o chão vibra. O desejo de ir. Se ao menos um parasse! Sempre o sonho.»

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #604

A vegetariana, de Han Kang

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

Seis poemas de Rabindranath Tagore