História de um casamento, de Noah Baumbach


Por Pedro Fernandes



Aqueles que guardam sua predileção pelo cinema europeu (no meu caso, não escondo a predileção pelos franceses) não deixarão de lamentar depois de ver ao filme de Noah Baumbach que o enredo não tenha sido executado pelos mestres do drama cinematográfico. A razão é simples: trata-se de um objeto que reúne todas as condições para ser um grande filme, mas a inaptidão para a narrativa, famosa entre os estadunidenses, rouba tal possibilidade e o que assistimos é apenas um dramalhão no melhor estilo Sessão-da-tarde, para utilizar um designativo popular entre nós sobre filmes que poderiam ser melhores.

É de um sueco um trabalho que recupera a premissa de Noah Baumbach. De quase quatro décadas antes, Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman, é, possivelmente, a melhor versão sobre o tema explorado neste filme de 2019. O diretor estadunidense sabe disso e não deixa de render vênias ao clássico não apenas na relação paratextual firmada pela assinatura do enredo, mas pelas retomadas interiores de elementos que sublinham a obra do criador sueco.

O que parece ser um problema aqui – e isso pode ser apenas uma implicância pessoal – é o gosto do estadunidense pela simplificação do drama que, nesse caso, se oferece pela introdução do juridiquês. Por alguns momentos isso parece até constituir certo elemento paródico no interior da narração: primeiro, pelo interesse do casal em separação de resolverem por conta própria o imbróglio do divórcio; depois, quando essa possibilidade amistosa deixa de existir, a preocupação torna no diálogo entre Charlie e o primeiro advogado que assume a frente do caso em saber se a situação da separação seria ou não levada ao fórum.

É bem verdade que, no contexto da narrativa fílmica a ausência do trâmite jurídico poderia resultar no grosseiro erro de verossimilhança. Mas, a questão não está em envolver ou não o tribunal, está em transformá-lo no motivo central da narrativa. É aqui que notamos a inaptidão do estadunidense para a narração: a resolução do caso num primeiro acordo judicial, sabemos, abre diversas possibilidades dramáticas, esse desafio parece colocar em crise o andamento da narrativa e assim é preferível, só uma vez mais, ir pelo caminho já conhecido. E a narrativa desanda desde então.

Mas, até que tudo resulte num embate jurídico, qual é a narrativa de História de um casamento? Dez anos depois de estabelecerem um vínculo amoroso, Charlie e Nicole decidem pela separação. Os dois estão ligados não apenas pelo enlace amoroso em desfazimento como por um filho de oito anos, a profissão em comum, ele é diretor e conduz uma pequena companhia de teatro onde Nice trabalha como atriz. O fim do casamento pelo acordo comum entre os dois se dá por uma situação aparentemente propícia: ela é convidada por uma produtora de sua terra natal para uma série enquanto ele está totalmente envolvido com sua estreia na Broadway.

O retorno de Nicole a Los Angeles reacende uma variedade de sentimentos que parecia escamoteada com a convivência com Charlie em Nova York: a possibilidade de rever sua ligação com a terra natal e a vida que ficou por viver, incluindo o exercício de suas liberdades individuais, como o convite para direção de um trabalho, realização sempre postergada pelo próprio companheiro. As coisas assentam melhor para ela quando o filho se integra facilmente com a nova vida. Assim, o que deveria ser apenas um tempo fora de Nova York se vislumbra como permanência e isso afeta diretamente os planos possíveis assumidos com Charlie. O abalo maior desse compromisso informal começa a se estabelecer quando, aconselhada por uma amiga há anos separada e ainda assim em plena convivência com o ex-companheiro no mesmo ambiente de trabalho, oferece os serviços de uma advogada, apresentada como a capaz de repetir o mesmo feito com o caso de Nicole.

Intimado, Charlie precisa, entre a vida atribulada em Nova York, encontrar um advogado e repensar suas próprias escolhas se não quiser perder de estar próximo ao filho que tanto ama. Quer dizer, o que Noah Baumbach tem a seu favor é explorar a transformação casual de uma situação: se no passado, Nicole abdicou de tudo para acompanhar Charlie, agora é ele que enfrentará a mesma condição. Nesse processo seria possível estabelecer todas as idiossincrasias dos dois, observando a variedade de problemas que envolvem as posições de homens em mulheres em relacionamentos duradouros. Embora, algumas das questões sejam sugeridas e a narrativa entre em algumas delas, como na revelação de uma misoginia disfarçada, o curso dos raciocínios que essa premissa narrativa oferece são simplificados ou simplesmente tornados em embate judicial.

No final, o que o filme aponta é o quanto o aparato jurídico, envolto exclusivamente no princípio legal e nos dispositivos do capital, se coloca como um impeditivo aos laços afetivos que ainda possam durar para depois do casamento. Óbvio que nem todos os relacionamentos findam com o cavalheirismo que a situação cobra, sobretudo quando pelo meio passam pessoas que não têm quaisquer culpas pelo desandar dos interesses, mas, mesmo quando existe essa alternativa ela é escamoteada pela intriga jurídica. O filme questiona a lei? Não. Reconhece o quanto o direito de família foi transformado numa cláusula cujo intuito é alimentar o apetite financeiro dos advogados; ou, como as relações, incluindo as de afetividade, fora delas próprias, são vistas exclusivamente como uma disputa entre partes interessadas exclusivamente no capital.

História de um casamento perde ainda o tratamento de as vivências artísticas das duas personagens incidirem como símbolos e metáforas para o narrado. Eis outra das várias fragilidades quanto a habilidade narratológica. Mas, se as escolhas de rumos ou mesmo os desenvolvimentos são outros, isso não recai como um problema dos mais graves. Toda história é feita de escolhas e o que vemos são as escolhas de um cineasta que quis colocar à prova, ao que parece, duas situações: a de compreender melhor o masculino no interior de uma instituição forjada como outro dos princípios de sua dominação, afinal, o divórcio é uma conquista eminentemente feminina advinda de um contexto no qual à mulher sempre cabia o papel de salvação e permanência no casamento em falência; e a de compreender como o direito, essa instituição de bases também masculinas, não encontrou a medida coerente da justiça e da humanização de um processo caro afetivamente para as partes envolvidas.

Se observarmos o filme a partir das duas premissas citadas acima, logo compreenderemos qual o esforço de Baumbach: encontrar num território transformado em disputas – jurídicas ou capital – um equilíbrio entre dois pontos de vista. Nisso terá alcançado seu propósito porque consegue perfeitamente distanciar as partes envolvidas no desenlace amoroso e as partes que transformam essa situação em duelo. Nesse ínterim, não se entrega à guerra dos sexos e nem escolhe como alternativa o melodrama sobre o fim do amor ou do sofrimento da criança com o imbróglio dos pais. Felizes escolhas: o espectador tem acesso a uma história bem contada sobre o fim de uma relação e o começo de muitas outras e suas implicações dentro e fora delas. Ao menos encontrou alternativas muito à frente do seu filme de 2005, A lula e a baleia no qual dramatiza a história de uma separação pelo ponto de vista de dois adolescentes.

E, para que a acusação sobre a falta de uma relação mais estreita entre o conteúdo da narrativa fílmica e da ficção que se encena no seu interior não soe gratuita, podemos admitir o quanto de teatral se infere em variadas passagens da narração: a entrega da intimação a Charlie, a longa cena de discussão entre ele e Nicole depois da primeira audiência no fórum ou mesmo a visita da agente à casa onde Charlie recebe o filho, um cenário forjada para entreter os sentidos jurídicos, são alguns dos vários exemplos logo visíveis em História de um casamento. Esses episódios, aliás, sublinham pontos interessantes do filme.

Por fim, não deixamos de reparar: não é só a presença en passant de Ingmar Bergman o que se vislumbra aqui. Se muito tem do próprio diretor na obsessão por um desvelamento da condição feminina, patente desde o belo Frances Ha, há muito de Woody Allen, entrevisto desde a cena de abertura, em que as duas personagens principais se apresentam numa leitura de um sobre o outro, e na obsessão por Nova York numa situação em que cidade se mostra ora a Meca para a personagem de Adam Driver ora insinuada como entrelugar ou o lugar da recusa para a personagem de Scarlett Johansson.

Bom, mas esta é uma obra sem grandes pretensões. E, se o propósito de bons filmes é contar bem uma história, a que se propõe aqui e maneira como é conduzida cumprem esse objetivo. É uma obra que se mostra aberta a participar dos debates mais caros sobre uma instituição em contínuo declínio desde antes do divórcio. Tem, assim, seu mérito.

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