As lições de O sol é para todos

Por Guillermo Altares


cena do filme adaptação da obra de Harper Lee, O sol é para todos.



Raríssimos escritores passaram para a história da literatura com um só romance. E menos ainda por um só personagem. Harper Lee, a romancista estadunidense, é um caso insólito: publicou um só livro com o qual ganhou o Prêmio Pulitzer, O sol é para todos. O romance protagonizado por advogado do interior do sul dos Estados Unidos, Atticus Finch, representa os melhores valores da humanidade. Atticus não é uma personagem de papel, nem um arquétipo, é um ser de carne e osso, um viúvo que toma a frente de uma família e ao mesmo tempo lida com a profunda injustiça de segregação racial do Velho Sul.

O sol é para todos foi publicado em 1960 e levado ao cinema no ano seguinte por Robert Mulligan com Gregory Peck como protagonista. É narrado em primeira pessoa, pela filha de Atticus, Scout, e relata um episódio de sua infância. Por um lado, é um livro em que algumas crianças descobrem o mundo e, sobretudo, que nunca há que se deixar levar pelos prejuízos. Além dos Scout e seu irmão Jem, a terceira personagem infantil é Dill, um menino inspirado num que acabaria por converter-se num dos grandes nomes da literatura estadunidense, Truman Capote. 

Além de ter que lidar com o as intrigas onde se metem seus filhos, Atticus deve defender Tom Robinson, um negro injustamente acusado de estupro a uma mulher branca num Alabama racista de quando da Grande Depressão. Finch, um homem branco que faz parte do sistema, tem claro desde o princípio que deve defender seu cliente, sem importar-se com a pressão social que padece ou, mesmo que possa acabar com sua própria vida para fazê-lo.

Atticus não idealiza o lugar onde vive – “Este é seu país: o temos feito desse modo e mais que aprendam a aceitá-lo tal como é”, afirma; sequer pretende mudar o Velho Sul. Seu principal objetivo é um só: fazer o que é certo, sempre deixando-se levar por uma profunda empatia. Na frase mais famosa do romance, diz: “Queria que você descobrisse o que é o verdadeiro valor, filha, em vez de acreditar que o encarna um homem com uma pistola. Alguém é valente quando, sabendo que a batalha está perdida de antemão, tenta apesar de tudo e luta até o fim, aconteça o que acontecer. Alguém vence raras vezes, mas alguma vez vence”.

Quando o romance foi publicado começava o movimento pelos direitos civis, antes que fossem revogadas as leis racistas que dominaram o sul dos Estados Unidos, onde, apesar da abolição da escravidão, seguia existindo uma segregação institucionalizada. Tanto Harper Lee como Robert Mulligan na adaptação cinematográfica, uma obra-mestra em que se destaca o inesquecível Gregory Peck, souberam captar esse momento crucial, em que pessoas que não eram revolucionárias, nem pretendiam mudar o sistema, só a sociedade, acabaram por transformar tudo.

Os protagonistas daquele momento da história dos Estados Unidos foram uma senhora que se negou a ceder o assento num ônibus, um pastor de enorme carisma, uma mulher que entrou numa universidade apesar das ameaças. Eram pessoas que, como Atticus Finch, tinham muito claro que não queriam seguir vivendo no meio de uma estarrecedora injustiça. 

Atticus, além disso, é branco, advogado e com problemas econômicos suficientes e vitais para se converter apenas num ressentido a mais. Mas, seu sistema de valores é mais forte que suas próprias circunstâncias, sempre teve claro que entre a injustiça e sua mãe, elegeria a justiça, que seus filhos só teriam um futuro melhor num mundo mais justo, não mais injusto. 

O caminho que Atticus Finch tomou segue sendo válido até hoje; sua lição segue viva. “Alguém não compreende realmente uma pessoa até quando se mete em sua pele e caminha dentro dela”, diz. Harper Lee ajudou a criar um mundo melhor com um livro e seu protagonista que há muito deixou o mundo da ficção.

* Este texto é uma tradução de “Hasta pronto, querido Atticus Finch”, publicado aqui, no jornal El País.


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