Miacontear - O dono do cão do homem



Antes de adentrar na narrativa de “O dono do cão do homem”, temos, obrigatoriamente, de reparar o jogo semântico elaborado a partir de seu título. O substantivo cão adquire uma dupla via de sentido no mínimo. Ao passo que sugere ser o cão aquele que tem um dono (o homem) sugere ser o homem aquele que tem um dono (o cão). Ao mesmo tempo, tomada esta sentença, pode se referir a uma vida difícil (vida de cão) na posição do cão de domesticador do homem. E esse jogo de sentido dará conta do que propõe a narrativa. 

Observando certamente a proliferação de mimos do homem para com os cães, mal notadamente do século: os cães como elemento que suprem a carência afetiva da qual padece o homem contemporâneo, cada vez mais isolado, vivendo mundos fechados à convivência em grupo, Mia Couto elabora um texto em que a posição de domesticação do animal é invertida e quem agora é domesticado é o homem em relação às criaturas de quatro patas. 

Bonifácio é o nome do cão em questão. Caricato nome, “de tão humano, quase me humilha.” Bonifácio. Nome que reitera a leva de bichos que circulam por aí com nomes tão ou até mais humanos que este.

“Aos fins da tarde, eu o levava a passear. Isto é: ele me arrastava na trela. Bonifácio é que escolhia os atalhos, as paragens, a velocidade. E houve vezes que, para não dar inconveniências, eu rebaixei a ponto de recolher o fedorento cocó. Prestei tal deferência aos meus próprios filhos? Depois de toda esta mordomia, as pessoas atentavam apenas nele:

- Belo exemplar, lindo bicho - diziam.

Quando me notavam era por acidente e acréscimo. Eu, humildemente eu, na outra extremidade da trela.” (p.104).

O que vamos assistindo no desenvolver da narrativa é um constante processo de animalização do homem e humanização do cachorro, a ponto de o dono de Bonifácio largar tudo o que tinha para ir viver numa loca como cão e Bonifácio ter para si todas as mordomias do dono, “tudo, vizinhos, amigos, os gastos e os ganhos de uma vida inteira”. 

O processo de animalização do homem no conto é uma crítica ácida aos desafetos humanos na sociedade contemporânea. Aos bichos é dada uma atenção e supervalorização que extrapola os limites do cuidado do homem para os seus semelhantes. Mais: ao transferir ao bicho valores que não são partilhados no seu mundo, o homem se isola da convivência de outras pessoas, perde, logo, seus referenciais. Exemplo está no fato de as tarefas desempenhadas para com o seu cão passarem distante dos cuidados que tem/ teve para como o próprio filho. 

Ligações a esta post
>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.

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