A biblioteca pessoal de Jorge Luis Borges



Há quem se orgulhe dos livros que escreveu, eu me orgulho dos que li. A frase não com essas palavras, mas com esse sentido, é de Jorge Luis Borges. Sabedores que somos de que por trás de todo grande escritor vive um grande leitor, é impossível ser uma coisa sem ser a outra, sabemos também que o escritor argentino protagonizou muitos momentos de sua vida em que se demonstrou na figura que o antecede e na dedicação dada ao livro. Não é raro encontrarmos na web a expressão desse seu amor pelos livros.

Penso que no paraíso como uma grande biblioteca. Terá dito, claro, não com essas palavras, mas com esse sentido noutra ocasião. E, partir de um texto de “Os livros que me fizeram escritor”, de J. M. Coetzee, que traduzimos uma vez para este blog, soubemos que Borges trabalhou na produção de algumas listas de leituras muito generosas, diga-se. Porque numa delas, a “Biblioteca de Babel”, criada em 1970 para um editor italiano, conta com 33 volumes de literatura fantástica. “Babel” foi publicada e cada um dos livros ganhou prefácio do escritor.

Depois, Borges trabalhou noutros empreendimento dessa mesma natureza, mas com proposta diferenciada: a “Biblioteca pessoal” deveria ter 100 volumes. Mas, o escritor morreu antes de concluir a empreitada. Até aquela ocasião já tinha selecionado mais de sete dezenas de títulos sem obedecer a um gênero específico da literatura como era caso na lista da década de 1970.

Essa capacidade de leitor arguto evidentemente se refletiu em sua obra, lida pela crítica como “reformuladora da ficção moderna”. Borges conseguiu conciliar a cultura popular de onde provém com a alta cultura, mesclando gêneros como a ficção científica e a história de detetive com discursos filosóficos, por exemplo, ou fundindo num processo de relação simbiótica a realidade e a existência. Não faltará quem diga ser O jardim dos caminhos que se bifurcam pela descrição do romance como labirinto como um presságio sobre a textualidade, mais exatamente, o hipertexto, na era da internet. Toda a literatura latino-americana terá sido influenciada pela obra de Borges que foi eleita pela BBC como a mais importante do século XX.

Mas, a atividade leitora de Borges não se resumiu ao passatempo. Durante muito tempo, o argentino trabalhou como crítico literário, escreveu crítica sobre cinema, e, claro, foi bibliotecário durante largo tempo e até tornou-se diretor da Biblioteca Nacional, em Buenos Aires. Na lista pessoal que começou a conceber, o caráter seletivo do escritor não segue um padrão determinado. Borges era um leitor eclético e não se preocupou em eleger alguns nomes clássicos como Goethe, ou James Joyce.

Há na sua lista uma forte decisão política que justifica sua escolha; compreende que aquilo que está no cânone universal está, será sempre lembrado por isso e será sempre tido como obra de preferência dos leitores, ainda que sejam esses leitores uns hipócritas. Sabendo da influência que construiu, seu interesse, portanto, foi de alargar as fronteiras desse cânone a fim de “obras periféricas” também ganhassem ao menos a curiosidade do leitor comum. Então estão aí nomes como Edgar Allan Poe (clássico para uns, mas para outros e, sobretudo, naquela ocasião um desfavorecido), Rudyard Kipling (nome que pouquíssima gente terá conseguido saber sobre), Robert Louis Stevenson, H. G. Wells.

Além disso, era esta uma biblioteca pessoal. Borges parece ter levado muito ao pé da letra essa compreensão e afirmar que seu gosto deve zelar por sua individualidade e não ser o gosto de todo mundo. Sem falar, que o escritor demonstrou-se ser um grande leitor não apenas do clássico, mas daquilo que se publicava no seu tempo: uns nomes terão sobrevivido até nós, outros não e possível que sejam resgatados em alguma ocasião justamente pela lista de Borges, outros, ainda assim, estarão no abismo do esquecimento. O fato é que, até nas escolhas ou na forma das escolhas, ele soube ousar. Por mais que muitos dos textos que ajudou compor sua lista de leituras não esteja ao alcance do leitor comum ficam como provas do leitor versátil que foi e um exemplo às novas gerações de leitores.

1. Textos de Julio Cortázar (que podem se referir a O jogo da amarelinha ou aos contos do escritor – sabemos do interesse de Borges pela narrativa curta e da maestria de Cortázar com o gênero, sendo, inclusive, um dos primeiros a pensar metodicamente à respeito)
2. Os Evangelhos apócrifos
3. O desaparecido ou Amérika e os contos de Franz Kafka
4. The Moonstone de Wilkie Collins
5. A inteligência das flores, de Maurice Maeterlinck
6. O deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati
7. Peer Gynt e Hedda Gabler, de Henrik Ibsen
8. O mandarim e outras histórias, de Eça de Queirós
9. O império jesuíta, de Leopoldo Lugones
10. Os falsificadores, de André Gide
11. A máquina do tempo e O homem invisível, de H. G. Wells
12. Os mitos gregos por Robert Graves
13. Os demônios, de Dostoiévski
14. Matemática e imaginação, de Edward Kasner
15. O grande Deus Brown e outras peças, Estranho interlúdio e Mourning Becomes Electra, de Eugene O’Neill
16. Os contos de Ise
17. Benito Cereno, Billy Budd e Bartleby, o escrivão, de Herman Melville
18. O trágico cotidiano, O piloto cego e Palavras e sangue, de Giovanni Papini
19. Os três impostores
20. Cântico dos cânticos
21. The end of Tether e Coração das trevas, de Joseph Conrad
22. A história do declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon
23. Ensaios e diálogos, de Oscar Wilde
24. O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse
25. Buried alive, de Arnold Bennett
26. Sobre a natureza dos animais, de Cláudio Elianus
27. A teoria da classe ociosa, de Thostein Veblen
28. A tentação de Santo Antão, de Gustave Flaubert
29. Viagens, de Marco Polo
30. Vidas imaginárias, de Marcel Schwob
31. Cesar e Cleópatra, Major Barbara e Cândida, de George Bernard Shaw
32. Vida de Marco Bruto e A hora de todos, de Francisco Quevedo
33. The red Redmaynes, de Eden Phillpotts
34. Temor e tremor, de Kierkegaard
35. O Golem, de Gustav Meyrink
36. Lição do mestre, O desenho do tapete e A vida privada, de Henry James
37. Os nove livros da história de Heródoto
38. Pedro Páramo, de Juan Rulfo
39. Contos, de Rudyard Kipling
40. Vathek, de William Beckford
41. Moll Flanders, de Daniel Defoe
42. O segredo profissional e outros textos, de Jean Cocteau
43. Os últimos dias de Emmanuel Kant e outras histórias, de Thomas de Quincey
44. Prólogo do trabalho de Silveiro Lanza, de Ramón Gómez de la Serna
45. As mil e uma noites
46. As novas mil e uma noites e Markheim, de Robert Louis Stevenson
47. A salvação pelos judeus, O sangue dos pobres e Na escuridão, de Léon Bloy
48. Bhagavad Gita e Epopeia de Gilgamesh
49. Histórias fantásticas, de Juan José Arreola
50. Senhora ao Fox, Um homem no jardim zoológico, O regresso do marinheiro, de David Garnett
51. As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift
52. Crítica literária, de Paul Groussac
53. Os ídolos, de Manuel Mujica Lainez
54. Livro do bom amor, de Juan Ruiz
55. Poesia completa, de William Blake
56. Above the dark circus, de Hugh Walpole
57. Obra poética, de Ezequiel Martínez Estrada
58. Contos, de Edgar Allan Poe
59. Eneida, de Virgilio
60. Histórias, de Voltaire
61. Um experiência com o tempo, de J W Dunne
62. Ensaio sobre Orlando Furioso, Attilio Momigliano
63. As variedades da experiência religiosa e Um estudo sobre a natureza humana, de William James
64. A saga de Egil, de Snorri Sturluson
65. O livro dos mortos
66. O problema do tempo, de J. Alexander Gunn


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #603

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596

Bambino a Roma, de Chico Buarque

Boletim Letras 360º #595

A criação do mundo segundo os maias